sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A malária brasileira fora da Amazônia.

A malária brasileira fora da Amazônia.
Dr. Wanir José Barroso, sanitarista, especialista em epidemiologia e controle de endemias.
E-mail: wanirbarroso@gmail.com


A malária como doença parasitária de evolução rápida continua sendo um grave problema de saúde pública no Brasil e em outras 111 áreas endêmicas de cerca de mais de 100 países. A malária humana também detém a identidade de ser a antroponose de maior prevalência no planeta, isto é, nenhuma outra doença do homem transmitida ao próprio homem, através de alguns mosquitos do gênero Anopheles, atinge e mata um número tão grande de pessoas. Há vários anos no planeta, são estimados algo entorno de meio bilhão de casos que ocasionam centenas de milhares de óbitos anuais, sendo em sua maioria crianças com menos de 5 anos de idade, além de colocar sob o risco de contrair a doença cerca de 40% da população mundial residente em sua área tropical. No Brasil a autoctonia de casos, situação em que os três elementos do ciclo evolutivo da doença (o homem, o mosquito e o Plasmodium) são ou estão na mesma região, está concentrada em todos os estados da Amazônia Legal mais o oeste do estado do Maranhão, em regiões de Mata Atlântica de diversos estados do sudeste, além de regiões do Vale do Rio Paraná. Os Estados do sudeste brasileiro além de todo restante da região extra-amazônica, a partir das décadas de 60 e 70, tiveram suas áreas maláricas transformadas em regiões de transmissão interrompida. Houve nessa época o tratamento maciço de casos, mas não houve a eliminação do mosquito transmissor, o que torna essas regiões vulneráveis à ocorrência de episódios de reintrodução da doença. Os principais mosquitos transmissores de malária nos Estados da região extra-amazônica são o Anopheles aquasalis, no litoral, o Anopheles cruzii, em regiões de Mata Atlântica e o Anopheles darlingi, em outras regiões. O Anopheles darlingi é o principal transmissor de malária no Brasil e está distribuído praticamente por todo o país. Seus principais criadouros são respectivamente: as áreas alagadas com água salobra ou do mar no entorno do litoral, as plantas que acumulam água em suas folhas, como as bromélias que são abundantes em toda região de Mata Atlântica e as áreas alagadas e sombreadas do Vale do Rio Paraná, entre outras. A malária de Mata Atlântica nos estados do sudeste como RJ, SP, ES e SC têm como características: a ocorrência de casos isolados entre visitantes e moradores da região que necessariamente entraram em contato com a mata ou estiveram próximos a ela, o registro de casos em vários municípios possuidores de Mata Atlântica, a presença preponderante do Anopheles cruzii como transmissor, o diagnóstico de malária por Plasmodium vivax com baixa parasitemia e a existência de uma representativa população de assintomáticos e oligossintomáticos da doença detectada em torno de alguns casos estudados, através de inquéritos sorológicos para Plasmodium vivax e pesquisa de Plasmodium em esfregaços sangüíneos. O comportamento epidemiológico da doença após a ocorrência de múltiplos e discretos surtos ao longo destes últimos anos nas regiões de Mata Atlântica no Brasil nos sugere que a malária de Mata Atlântica ainda esteja enfrentando a fase de transposição da barreira imunológica dos reservatórios, isto é, enquanto os anticorpos específicos dos pacientes assintomáticos estiverem contendo a multiplicação do protozoário mantendo baixa a parasitemia nesses pacientes, estarão baixas a circulação de gametócitos e a infectividade nos mosquitos transmissores. Neste período de constantes e discretos surtos ou microepidemias, enquanto não se observa o registro de níveis endêmicos mais expressivos da doença, o esperado é que continuem a ocorrer novos e esporádicos casos de malária entre visitantes e moradores não imunes nessas regiões, pela existência da população de assintomáticos ao redor de cada caso. O fato de haver poucos registros de casos não quer dizer que a doença esteja sob controle, pois os infectados sintomáticos com retardo de diagnóstico e os assintomáticos sem diagnóstico e sem tratamento oferecem a possibilidade de continuar mantendo o Plasmodium em circulação na região, infectando mosquitos e produzindo casos. A realização de novos inquéritos sorológicos para Plasmodium vivax nas diversas regiões de transmissão da malária de Mata Atlântica permitirá a identificação e o tratamento dos portadores da doença, além de permitir avaliar a extensão do problema. A principal estratégia de controle da malária de Mata Atlântica ainda é o pronto diagnóstico e tratamento dos sintomáticos e assintomáticos, como se sintomáticos fossem, sob pena dela continuar sendo por desinformação confundida com outras doenças e tratada muitas vezes apenas como febre de origem obscura. A reintrodução de malária por Plasmodium vivax nestas regiões, através de casos importados oriundos de áreas endêmicas como a Amazônia, pode interferir na infectividade do mosquito, difundir novas cepas, acelerar a ocorrência de novos surtos, além de oferecer a possibilidade de descaracterizar do ponto de vista epidemiológico e terapêutico à evolução da doença enquanto malária de Mata Atlântica. A presença de novas espécies de Plasmodium nessas regiões caracteriza uma nova situação epidemiológica. Desequilíbrios ambientais podem reduzir a população de predadores da larva de anofelinos, mosquitos transmissores de malária, e conseqüentemente favorecer a possibilidade de manutenção e expansão da doença. Situações de equilíbrio ambiental mantêm estes insetos na cadeia alimentar de seus principais predadores e praticamente incapazes de se envolverem em surtos ou epidemias pela baixa densidade de suas formas adultas. Pensar em malária diante de um paciente febril sem outros diagnósticos conclusivos em qualquer região do país, não se constitui em nenhum absurdo do ponto de vista clínico ou epidemiológico, principalmente se o paciente é oriundo de área endêmica, freqüentou regiões de Mata Atlântica no sudeste brasileiro, tem história de malárias anteriores ou de transfusões sangüíneas em área endêmica. Considerando-se estes fatos o diagnóstico de malária fora de área endêmica como a Amazônia, por exemplo, deixa de ser clínico-laboratorial para ser epidemiológico-laboratorial. Perguntar por onde o paciente esteve nos últimos 30 dias e associar possíveis áreas de transmissão de malária à febre ou outros sintomas, representa uma direção para o diagnóstico no paciente. Histórias de malárias anteriores também podem sugerir diagnósticos de recaídas ou recrudescências, dependendo da espécie de Plasmodium. Transfusões sangüíneas em áreas endêmicas ou ter frequentado portos ou aeroportos representam outras possibilidades que direcionam o diagnóstico. O Brasil é um país endêmico de malária, e esta possibilidade de diagnóstico deve ser encarada sempre como possível em qualquer parte de seu território, principalmente pela ocorrência de casos importados que podem ser detectados em qualquer região. Investir e disponibilizar informações para quem se dirige ou chega de área de transmissão da doença representa estratégia que dificulta a reintrodução de casos, possibilita o tratamento no início da doença, evita a evolução para suas formas graves e o óbito desnecessário pelo retardo de diagnóstico e de tratamento. Informações sobre o que é a doença, suas formas de transmissão, seus sintomas, os grupos de risco que podem desenvolver formas graves, o uso de quimioprofiláticos, as principais medidas de proteção individual e coletiva e principalmente onde buscar por socorro médico em qualquer região do país, representam informações importantes como estratégia de controle da endemia. Além da autoctonia de casos de malária de Mata Atlântica, a região sudeste e outras regiões da extra-amazônia brasileira convivem com outras situações de casos de malária. Dentre essas estão alguns casos que evoluem para o óbito, tendo como principal causa a desinformação sobre a doença não só por quem contrai a doença, mas, sobretudo por desinformação da rede assistencial particular e uma grande parte da rede assistencial pública, considerando-se a ausência da cultura da malária nessas regiões por deixarem de ser áreas endêmicas há cerca de pouco mais de quatro décadas. Existe ainda no Brasil uma enorme lacuna sobre a prevenção de doenças através da informação, principalmente para viajantes. Outra situação se refere aos casos importados tanto da Amazônia como da África ou outra área endêmica que são maioria no sudeste e em toda região extra-amazônica brasileira. Esses casos cumprem o período de incubação intrínseco, que corresponde a fase hepática da doença, e vem apresentar os sintomas fora da área endêmica ou de transmissão, ou até mesmo em outra área de transmissão onde são diagnosticados e tratados. A malária também migra na Amazônia pela importação de casos. Esse período de incubação pode durar de 8 a mais de 30 dias e varia segundo a espécie parasitária, a carga parasitária ou número de protozoários injetados no momento da picada, o uso de medicamentos como quimiprofiláticos e as condições imunológicas do paciente. O período de incubação da malária por P. vivax gira em torno de 12 dias, na malária por P. falciparum um pouco menos e na malária por P. malariae cerca de 30 dias. Uma quarta situação da malária fora da Amazônia, se refere a casos introduzidos, que são aqueles casos oriundos de episódios de reintrodução da doença. Alguém chega com malária em região de transmissão interrompida, como o Rio de Janeiro, por exemplo, permanece sem diagnóstico e tratamento, são picados por mosquitos transmissores da doença, estes se infectam e transmitem a doença em tantos quantos picarem após cumprir o período de incubação extrínseco, que ocorre no mosquito-fêmea e que dura cerca de 10 a 12 dias. Dois episódios importantes ocorreram no RJ, um em 1997, em Itaipuaçu-Maricá e outro em 2002, em Paraty. O risco de se conviver com episódios de reintrodução de malária no Rio de Janeiro ou em qualquer área de transmissão interrompida da região extra-amazônica é permanente, porque permanentes são: a existência de mosquitos transmissores de malária em algumas regiões não urbanas ou pouco urbanizadas e a chegada de viajantes doentes com malária nessas regiões. A desinformação sobre a doença, a ausência da cultura da malária, a não preservação ou o manejo ambiental predatório e a automedicação na área endêmica são fatores relacionados com os episódios de reintrodução da doença no Rio de Janeiro. Poucos casos induzidos e importados, ou por transfusão sangüínea ou por uso de drogas ilícitas injetáveis, também fazem parte dessa realidade em alguns Estados do sudeste. O que ocorre no sudeste, em termos epidemiológicos, ocorre na maioria das regiões da extra-amazônia brasileira. Investir em informação sobre a doença e investir no diagnóstico precoce são estratégias que reduzem a endemicidade da doença e fazem com que os mosquitos transmissores passem a ter importância secundária em regiões de transmissão interrompida ou em regiões onde o diagnóstico e o tratamento são feitos antes da aparição de gametócitos no paciente. Quanto mais veloz o diagnóstico e o tratamento, menores as chances de novos mosquitos se infectarem e de ocorrerem novos surtos ou epidemias. A implantação de medidas de impacto epidemiológico como o aumento da informação sobre a doença, o aumento da precocidade no diagnóstico e tratamento dos infectados e doentes, a detecção e tratamento de assintomáticos, o controle possível do mosquito transmissor e o aumento de parcerias comunitárias, institucionais e científicas são estratégias que influenciam na redução e controle da endemicidade da malária no planeta. Na Amazônia, a mudança de perspectiva de sua população com relação ao controle da doença representa ainda apenas uma das barreiras a serem vencidas com vistas ao controle e redução da endemicidade dessa antroponose no Brasil. Todas essas estratégias de controle da doença no planeta têm ainda como desafios entrelaçados encaminhamentos políticos e múltiplas soluções de determinantes epidemiológicas, ecológicas, socioculturais e econômicas, todas de dimensões continentais.

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