quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Por que a malária é endêmica no Brasil?

Por que a malária é endêmica no Brasil?

Wanir José Barroso
Sanitarista especialista em epidemiologia e contrôle de endemias pela Fiocruz/Brasil
Email: wanirbarroso@gmail.com

A 'endemicidade' da malária no Brasil já esteve perto do controle no ano de 1970, com pouco mais de 52 mil casos notificados. Nestas últimas três décadas o nível endêmico elevou-se de tal forma que se distanciou da possibilidade de um controle possível para aproximar-se de um controle cego da endemia.

Determinantes epidemiológicas, ecológicas, políticas, socioculturais e econômicas, são responsáveis pela mudança no curso do controle da malária no país.

Do ponto de vista clínico-epidemiológico, a malária se mantém endêmica no Brasil porque a maioria dos casos, ou são tratados tardiamente ou simplesmente não são tratados. Em outras palavras, a disponibilidade e acessibilidade de diagnóstico e de tratamento medicamentoso não atingem todos os homens doentes no início da doença e da mesma forma.

Os gametócitos são formas do protozoário (Plasmodium) que aparecem no sangue do doente após o rompimento das hemácias parasitadas. Estas formas plasmodiais são infectantes para o mosquito transmissor e inertes para o homem doente.

A destruição destas formas deve fazer parte do tratamento do doente numa área endêmica. O retardo de diagnóstico e de tratamento faz com que haja oferta de gametócitos pela maior exposição do homem doente. Quando isto ocorre, numerosos ciclos da doença se completam ao mesmo tempo, viabilizando a doença e mantendo-a como endêmica.

A redução da 'endemicidade' da malária numa região de transmissão só acontece com o tratamento precoce de todos os doentes, isto é, antes da formação dos tais gametócitos.

Na malária por P. vivax eles aparecem em torno do 3º dia após o início dos sintomas enquanto que na malária por P. falciparum surgem em torno do 10º dia.

Uma vez iniciado o tratamento até o terceiro dia após o início dos sintomas na malária por P. vivax e até o 10º dia na malária por P. falciparum não há como acontecer a infecção no mosquito por falta de gametócitos circulantes, rompendo-se o ciclo.

O tratamento precoce não só impede que os pacientes evoluam para a forma grave da doença, evitando o óbito, como também reduz a aparição destas formas plasmodiais.

Identificar sorológicamente e tratar pacientes assintomáticos ou oligossintomáticos é igualmente importante, pois estes se constituem em reservatórios extras e ocultos de gametócitos que ajudam a manter a malária como endêmica.

É o que acontece, por exemplo, em regiões de Mata Atlântica no sudeste do Brasil, onde ainda registra-se a ocorrência de casos autóctones por P. vivax, que são, por desinformação, confundidos com outras doenças.

É ilusório pensar que o controle de mosquitos transmissores de malária na Amazônia possa representar a principal estratégia no controle da endemia, até porque um controle deste porte exigiria estratégias políticas, ecológicas e comunitárias de dimensões continentais.

De pouco adiantaria reduzir momentaneamente a densidade de vetores com inseticidas se junto com estes estaríamos reduzindo também uma numerosa população de predadores naturais destes insetos.

Necessário é que antes se avalie as causas do aumento da densidade de vetores transmissores como também a utilização de outras estratégias de recuperação ambiental.

Deve-se privilegiar a recomposição do equilíbrio ecológico-ambiental permitindo que a própria natureza possa realizar seu papel, mantendo estes insetos em baixa densidade e quase incapazes de se envolverem em surtos ou epidemias.

O uso de inseticidas só deveria ser utilizado em áreas urbanas ou peri-urbanas para bloqueios de transmissão realizados de forma responsável e conseqüente, devendo-se obedecer à critérios rígidos e seguros, a fim de que não se estabeleça um descontrole do problema.

E mais ainda, não precisamos controlar ou erradicar os mosquitos transmissores de malária para se ter o controle da endemia, pois podemos perfeitamente conviver com sua existência, uma vez que, estes passam a ter importância secundária em regiões onde não existam casos ou em regiões onde os casos são prontamente diagnosticados e tratados, como em algumas regiões da extra-Amazônia brasileiras, onde a doença deixou de ser endêmica.

Hoje estas regiões de transmissão interrompida, como o RJ, por exemplo, estão vulneráveis à reintrodução da doença mais por pressão das áreas endêmicas mais próximas do que pela existência de mosquitos transmissores.

As demais determinantes do ponto de vista epidemiológico são aquelas relativas: à automedicação, que contribui para o aumento da resistência do protozoário frente aos antimaláricos e aos episódios de recidiva da doença, além de outras complicações; à desinformação sobre a doença que representa a principal causa de óbito por malária no planeta; e à resistência aos inseticidas como resultado do uso indiscriminado ou sem critérios.

Outras determinantes da 'endemicidade' da malária no Brasil, em uma série histórica, e ao longo do último século foram e continuam sendo relatadas pelos nossos mais brilhantes sanitaristas brasileiros.

A sensação é a de que o controle da malária no país nunca foi prioridade, até porque ela apresenta valores sócioculturais-epidemiológicos diferentes para uma mesma região. Quem estaria preocupado com seu controle se ela é encarada como 'gripe' na Amazônia e como malária no RJ ou SP?

À luz de tantos conhecimentos, nós brasileiros continuamos carecendo de explicações do porque a efetividade do controle da malária no Brasil não acontece. E já há algum tempo!

Em uma série histórica e antológica sobre a necessidade do controle da malária no Brasil, em 1912, Oswaldo Cruz já alertava que:

'Os elementos epidemiologicos, porém, são sempre os mesmos e na Amazonia, como em toda a parte, acham-se ao alcance de medidas muito capazes de attenual-os. O que ahi existe occasionando immensa hecatombe e malsinando as condições naturaes de toda a Amazonia, é a mais absoluta ausencia de assistencia medica e medicamentosa, é o desconhecimento completo das medidas de prophylaxia individual contra a malaria, é o abandono do proletario a um estado mórbido perfeitamente attenuavel ou a fatalidade da morte por uma molestia perfeitamente curavel. O que, emfim, constitue no vale do Amazonas a maior fatalidade é esse desprezo pela vida humana da parte dos poderes publicos e dos possuidores de seringaes, não existindo lá, onde a riqueza, trazida pelos resultados de uma indústria extractiva, só depende do trabalho humano, a noção exacta do valor de uma existencia!'
(Relatório sobre as condições médico-sanitárias do vale do Amazonas. RJ: Typ. do Jornal do Commercio, 1913, pág. 701);

Já o sanitarista Agostinho Cruz Marques, em 1986, identificava a malária de fronteira na Amazônia, oriunda da exploração desordenada da região, dizendo que suas causas eram compostas por: 'elevadas densidade vetorial, exposição a vetores e transmissão extradomiciliar, reduzida imunidade da população migrante, reduzido conhecimento da doença, elevada proporção de malária por P. falciparum, reduzida aplicabilidade de medidas de controle convencionais, fraca presença de outras instituições, reduzido senso de comunidade, elevada mobilidade populacional e marginalização política...'
(Rev. Bras. de Malariologia e D. Tropicais, vol 38, 1986);

E no ano 2000, durante a 7ª Reunião Nacional de Pesquisa em Malária, no RJ pelo prof. dr. Wilson Alecrim para quem a 'Malária é na atualidade o mais importante problema de saúde pública na Amazônia brasileira, em 1999 foram registrados 631.043 casos.

Nessa importância, não devemos levar em consideração apenas o elevado número de adoecimentos, mas também, o papel que a endemia representa como entrave ao desenvolvimento da região, contribuindo para o sofrimento e estado de pobreza das nossas populações...' e que '...as causas determinantes para a situação epidemiológica da malária na Amazônia, tanto nas áreas rurais como urbanas, não estão centradas nos vetores e nos plasmódios, mas com toda certeza nos problemas sociais e econômicos que com os quais estamos convivendo há décadas, e o que consideramos mais importante é que a busca de solução para problemas em outras regiões do país se comportam como agravantes para a situação epidemiológica da malária na Amazônia.'
('Razões para o agravamento da situação da malária no Brasil', Anais da 7ª Reunião Nacional de Pesquisa em Malária/Fiocruz, 2000)

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